segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Impressão.

Hoje escutei muito, mas muito, o primeiro disco de Moacir Santos, "Coisas", lançado em 1965. Absurdo, para dizer o mínimo.
Mas não foi para tecer loas que estou escrevendo.
É apenas para dividir uma impressão: lá pelas tantas, me peguei ouvindo Duke Ellington dentro da música de Moacir Santos. A forma dos arranjos, a maneira como ele explora os timbres. Parecido, na música instrumental, eu só havia escutado nas orquestrações de Ellington.
Será entusiasmo de primeira audição?

P.S: para os curiosos, um link para um tema que não paro mais de assoviar:

domingo, 16 de agosto de 2009

A Bossa Nova e o "cantar baixinho"

Sempre que se fala em Bossa Nova, aponta-se dois elementos: a batida do violão de João Gilberto e seu jeito de cantar. Ambos são apresentados como “a” novidade trazida por este estilo de música”. Quando se lê o livro de Ruy Castro – Chega de Saudade (Companhia das Letras, 1991) – se sai da leitura convencido que João Gilberto é um inventor. Ruy Castro reforça o mito do gênio. Há um capítulo dedicado ao grande mistério da Bossa Nova: o período de aproximadamente dois anos durante os quais João Gilberto ficou fora do Rio de Janeiro. Segundo o livro, ele passou por Porto Alegre, Diamantina, Juazeiro e Salvador, e foi neste período que ele inventou a batida e o jeito de cantar. De um fã e imitador de Orlando Silva, o cantor baiano passara a cantar baixinho, num estilo desenvolvido a partir da própria intuição.
Adianto-me: João Gilberto é um dos meus artistas prediletos. Seu disco homônimo de 1973 (com gravações de “Eu quero um samba”, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida; “Eu vim da Bahia”, de Gilberto Gil; “Falsa Baiana”, de Geraldo Pereira; “Águas de Março”, de Jobim) ocupa um lugar central nos meus afetos sonoros e é, pra mim, um dos melhores discos que já escutei na vida. No entanto, sempre fiquei com a “pulga atrás da orelha” e me pergunto: até que ponto a Bossa Nova era nova mesmo? Até que ponto aquele jeito de cantar e de tocar violão era novo? Não que eu duvide de Ruy Castro. Seu livro é uma delícia e é uma leitura obrigatória para quem quer conhecer os bastidores da Bossa Nova e o ambiente musical da Zona Sul carioca nos anos 40, 50 e 60. Porém, o leio como um mito e, como todos os mitos (o mesmo vale para a História) ele é apenas um entre os possíveis. Desse modo, reforço a pergunta: seria possível pensar a Bossa Nova não como ruptura na história da música brasileira – que é o que Ruy Castro apresenta, uma grande ruptura – mas como uma continuidade de coisas que já existiam?
Seria injusto com Ruy Castro afirmar que esta visão de ruptura lhe é exclusiva. A historiografia da música popular brasileira, de um modo geral, enfatiza a ruptura. E a Bossa foi sim uma ruptura. Ruy Castro, tomado aqui como índice de uma tendência mais ampla, tem razão. Porém, aqui não cabe o “ou” exclusivo: ou isto ou aquilo. Ela foi um ruptura e uma continuidade. E é a este último ponto que, tenho a impressão, não damos tanta atenção.
O próprio Ruy Castro dá algumas pistas, ao apresentar os “precursores” do jeito de cantar de João Gilberto. Nomes como Lúcio Alves, Tito Madi, Dick Farney, Johnny Alf, Silvinha Telles já cantavam de forma mais intimista antes de 1958 – data da gravação de “Chega de Saudade”. Mas Ruy Castro os apresenta como exceções – por isso, “precursores” – num universo marcado pelo estilo de cantar oposto, aquele com traços operísticos, central no estilo de cantar de um Vicente Celestino, um Jorge Goulart, um Gilberto Milfond ou um Paraguassu, por exemplo. “Cantores de opereta” é uma expressão que aparece no livro para designar os cantores que utilizam este estilo. Minha pergunta reside exatamente aí: seriam mesmo exceções?
João Gilberto tem um estilo de canto que, de fato, era mais intimista ainda do que seus contemporâneos. Basta ouvir suas gravações e as de Dick Farney, por exemplo. João Gilberto deixou o canto ainda mais intimista, mas de forma alguma ele “inventou” aquilo ou desenvolveu algo que uma meia-dúzia de cantores, apenas, fazia. Já havia uma tradição na música popular brasileira de um canto mais intimista. Talvez a palavra exata fosse: coloquial. Desde os anos 20, havia cantores cantando mais coloquialmente, sem impostações operísticas. O ponto é que Ruy Castro olhou apenas para a Zona Sul do Rio de Janeiro. Olhasse mais atentamente para o que se fazia no Estácio, por exemplo, desde os anos 30, e ele veria que esse canto coloquial era muito mais popular e praticado do que parece. Cantores como Aracy Cortes, Mário Reis, o próprio Francisco Alves, ou ainda, o sensacional Cyro Monteiro, já cantavam sem impostar a voz. O próprio Ruy Castro escreveu a biografia de Carmem Miranda. O que era Carmem cantando? Em todos estes cantores, um jeito coloquial de cantar já estava presente. João Gilberto “apenas” tornou a coisa ainda mais intimista. Talvez as pessoas da Zona Norte do Rio não tenham se interessado pela Bossa Nova não porque ela era difícil de ouvir, mas sim porque não havia nada de extremamente novo ali.
Influência do jazz?... Bem, toda a produção musical da “turma do Estácio” (Ismael Silva, Bide, Noel e outros) baseava-se, em termos de arranjos, numa fusão entre a percussão e os naipes de metais típicos das big bands americanas (basta ouvir “Se você jurar” ou “Agora é cinza”, gravadas em 1932 e 1933, respectivamente). A zona norte do Rio já dialogava com o jazz (sem fazer alarde) desde os anos 20. Os estudos sobre samba, atualmente, têm enfatizado que para falar da entrada do jazz na música brasileira, o nome central é Pixinguinha e sua produção na segunda metade dos anos 20 e na década de 30.
Repito: não se trata aqui de apontar um erro histórico. Nada disso. Para muitos jovens cariocas, João Gilberto, de fato, “inventou” aquele jeito de cantar. Essa é a história deles. O livro de Ruy Castro é a história de uma geração. Uma vez mais, contudo: se saímos de Ipanema e damos uma volta no Estácio, vemos que a história pode ser outra.