terça-feira, 5 de julho de 2011

Políticas do corpo ou o rebolado da Dona Miriam.

Ser negro na África do Sul entre os anos 30 e 90 não era fácil. Já não era antes, mas depois dos anos 30 só piorou. E ser negro com projeção internacional deveria ser ainda mais complicado. Miriam Makeba é um bom exemplo disto. Em 1959 foi cantar na Europa e o governo sul-africano, em pleno período de aumento do apartheid, não deixou ela voltar. Fez carreira no exterior e em 1964 apareceu mundialmente com o hit "Pata Pata" (Zuenir Ventura, em "1968: o ano que não terminou" cita a canção como um hit da época e nos anos 90 foi gravada com letra em português pela sumida Daúde). Achei um vídeo da Miriam. Deve ser da segunda metade dos anos 60. Em dois momentos do vídeo ela faz um rebolado que me fez entender o porquê do exílio. Para aqueles descendentes de holandeses que governaram a África do Sul em boa parte do século XX, aquele rebolado, de fato, era um atentado à segurança nacional. Uma pessoa com boas intenções não rebola daquele jeito. É um rebolado "capitu" - feito com "olhos de ressaca" - e só quem já se apaixonou por alguém rebolando assim (num samba ou num forró da vida) sabe o perigo que um rebolado desses é capaz de causar. Um rebolado destes não combina com instituições sérias como "família monogâmica" ou com conceitos mais sérios ainda como "poder pátrio". Imagino que nos anos 60 muitos militantes sulafricanos, anti-apartheid, pensavam em partidos ou em movimentos políticos, mas não há como negar que, de alguma forma, Miriam Makeba e seu rebolado também eram um perigo político. Reparem que no primeiro rebolado (1:10) ela diz "Everybody starts movin'...". Ou seja, incita ao rebolado. E no segundo rebolado (1:55), o câmera do vídeo entendeu a proposta e abriu a distância da fotografia. Certamente, caso estivesse inserido em uma "família monogâmica", teve que se explicar em casa depois. Em suma: essa Miriam Makeba, com esse rebolado, era um perigo.


Escrevo estas linhas com um certo humor que não quer, no entanto, fugir ao ponto central: a relação da música popular com o corpo. Um dos aspectos que, ao meu ver, nos estudos sobre música popular, tem sido negligenciado, é o fato de que a música popular, esse fenômeno da modernidade industrial (segunda metade do século XIX), tem uma relação intrínseca com o corpo. O que chamamos de música popular, me parece, nasce para se DANÇAR. O tango surge música para a dança. O samba, idem. O jazz: a mesma coisa. Todos surgem para serem dançados. E pior: para serem dançados em par. Cangote com cangote.
Recentemente vi uma palestra de um doutorando em filosofia que propunha uma nova abordagem da música mais atenta ao pulso (algo na linha de O Som e o Sentido, de José Miguel Wisnik). Por si a proposta é bacana, mas a palestra se revelou outra coisa. Criticando a surdez da tradição ocidental para o pulso, o palestrante sugeriu que trouxéssemos este elemento para primeiro plano, sobretudo na área de educação musical. "Vai cair na música popular", pensei. Não: citando o Olodum, comentou que também a música popular subestima a percussão e o pulso, pois estes elementos, não raros, ficam presos a regularidades. Uma fala do palestrante, também percussionista, deixou claro a questão: "nada mais chato para um pandeirista do que tocar num grupo de choro. É sempre a mesma coisa".
Mas eis o ponto central: a novidade não está no que o músico faz, mas na platéia. Em 1944, Charlie Parker e Dizzie Gillespie começaram a tocar suas inovações musicais, que recebeu no final da década, o nome de bebop. Há muita coisa escrita sobre a música do bebop. Mas há uma foto que, a meu ver, é extremamente sintomática do que era o bebop (em relação ao estilo de jazz cronologicamente anterior, o swing). É uma foto de um night club, com um quinteto de jazz (trompete, sax, piano, baixo e batera: ou seja, a formação consagrada pelo bebop). No pé do palco um cartaz dizia: "No dancing, please". Para alguns músicos, o bebop era uma revolução musical, com inovações melódicas, harmônicas e rítmicas. Para muita gente, no entanto, era uma música que não se podia dançar. Em suma: talvez a dança, mais do que a idéia de mercadoria, tenha sido o primeiro código de apropriação da música popular. Se olhasse também para a platéia do Olodum, dançando, talvez o rapaz da palestra acima visse a música popular com outros olhos.
Nos últimos 30 anos, trabalhos historiográficos, sociológicos e antropológicos sobre música popular conseguiram escapar de uma tendência mais antiga que demonizava a música popular por seu caráter mercadológico - tendência que tem em Adorno seu nome central. Se conseguimos escapar à Adorno, ainda não escapamos à pouca atenção dada a esta relação intrínseca entre a música popular e o corpo. Atentos a esta relação talvez compreendamos ainda mais profundamente (e deixemos de lado uma certa "má-vontade") "coisas" como o Arrocha (o ritmo mais popular da Bahia, atualmente), a cumbia villera (verdadeira febre na periferia de Buenos Aires) ou a psicodelia da chicha peruana dos anos 70.

Um comentário:

  1. Oi Allan!!!
    Desta vez vou seguir. Adorei o texto e a Miriam Makeba!!!
    abç
    Deise Lucy

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